Li por aí | Todo mundo tem método
A diferença é se você sabe o seu e se reconhece o do outro
Um dos benefícios do pensamento acadêmico é entender formatos. Além de saber navegar por um paper, outra coisa que aprendi foi a importância de um método.
Parece difícil quando a gente fala assim, mas método é basicamente é a sequência de regras utilizadas para fazer um determinado trabalho. Quando se questiona “o método” de uma pesquisa, o que se espera é basicamente uma explicação sobre a lógica usada para se chegar àquelas conclusões. Bacana, né?
Desde então, me vejo meio fascinada pelo conceito e passei a “ver método” em muita coisa. A forma como eu aprovava minhas pautas com os editores quando fui jornalista? Era um método. As escolhas que fiz ao longo do meu mestrado? Metodologia científica da minha pesquisa. Até aquele meme do TikTok mostrando o modo comum de se organizar gavetas de cozinha no Brasil? Método brasileiro, culturalmente espalhado de Norte a Sul, que preconiza a organização de talheres de uso comum na primeira gaveta, seguidos pela gaveta com talheres maiores e diversos, com a terceira abrigando panos de prato e de mão.
Até as doideras que algumas empresas de tecnologia têm feito recentemente também vem de um certo método comum das startups disruptivas, que envolve uma visão de “pedir desculpas ao invés de pedir licença”. A gente pode achar que foi deslize, uma eventualidade, mas quem acompanha o cenário tech há algum tempo vai lembrar do lema “mova-se rápido e quebre coisas”, usado por Zuckerberg lá por 2009. Desde então, o tipo de coisas que vêm sendo quebradas vai desde privacidade, democracias, saúde mental, mobilidade urbana, até o trabalho, que vêm se tornando outra coisa, plataformizado, precarizado, ainda que siga necessário.
Mais do que avaliar um método como positivo ou negativo, tenho me questionado se sabemos reconhecer que ele existe. Nós temos nossas formas de fazer, de cobrar, de falar, assim como os outros terão seus próprios formatos e maneiras também. Sem reconhecer que há uma visão e um método, podemos acabar achando que são outra coisa. Ao invés de elogiar o método científico de alguém, podemos achar que a pessoa é uma gênia. Podemos confundir o método de um artista com “talento” ou “dom”. Ao invés de admitir que há um método (de governo, de negócios, de trabalho), podemos achar que são “efeitos colaterais”, “o custo do progresso”, “o jeito que as coisas são”.
Se as ações são parte de um “processo organizado, lógico e sistemático” para alcançar um propósito, bem, estamos falando de uma metodologia. Acho mesmo que todo mundo tem um método. Ouso dizer que até “não ter formato claro” pode ser um método - não é à toa que o dadaísmo tinha até receita!
Esse é o tipo de discussão doida e a fundo perdido que eu costumava ter na academia e que sinto falta de poder manter de alguma outra forma. Na ausência dos colegas (às vezes igualmente doidos), fica aqui essa visão solta nessa newsletter.
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Coisas que eu li por aí
Era de Aquário que nada: na Era de Gêmeos, a busca já traz a resposta
A piadinha veio da Renata Honorato. Eu demorei pra sacar, então vou ajudar você: vem aí um monte de novidades baseadas no uso da ferramenta de IA Generativa do Google, conhecida como Gemini, que parece inaugurar uma nova era (de Gêmeos, ao invés de Aquário) nas buscas. Uma das principais mudanças é que antes de apresentar links com os resultados, o Google vai trazer resumos com tentativas de respostas para a sua pesquisa.
Os impactos ainda precisarão ser avaliados, mas o primeiro deles está bem claro: é muito provável que a taxa de cliques em links caia bastante. Quem precisa procurar mais depois de conseguir a resposta, não é? Má notícia para quem vive de conteúdo, que pode perder um substancial número de visualizações e, por consequência, de exibição de anúncios. Caso você não tenha ouvido falar muito sobre esse assunto, não se preocupe: os lançamentos aconteceram um dia depois de uma apresentação da OpenAI que apresenta uma versão nova do ChatGPT, o que meio que choveu na festa do Google, como bem destacou o Interfaces.
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A voz que não era para ser da OpenAI, mas foi
Imagine que te ligam perguntando se podem usar a sua voz pra alguma coisa e você diz que não. Tempos depois, usam a sua voz mesmo assim, mas dizem que “não é a sua voz, é apenas uma versão sintética muito parecida com a sua”.
É mais ou menos isso que aconteceu com a atriz Scarlett Johansson. Ela recebeu uma ligação da OpenAI que pedia autorização para que a voz dela fosse utilizada como o som que os usuários iriam ouvir ao interagir com o ChatGPT em áudio. Scarlett não curtiu a ideia e negou, mas mesmo assim a OpenAI foi com a ideia adiante, apresentando “Sky”, que fazia o ChatGPT ter uma voz impressionantemente similar ao tom e timbre da IA que aparece no filme Her, que é interpretada por Johansson.
Os advogados da atriz pediram esclarecimentos e quando a merda bateu no ventilador a mídia divulgou esses detalhes de bastidores, a OpenAI correu para explicar o processo de criação e seleção da voz (quase como que dizendo que a semelhança era uma mera coincidência), mas acabou decidindo remover a funcionalidade, ao menos temporariamente.
Esse é um daqueles casos em que as empresas de tecnologia preferem pedir desculpas do que pedir licença. Até porque efetivamente licenciar o uso da voz de Johansson parece que não ia ser bolinho! Segundo especialistas, pode existir um entendimento de que a entonação da voz que é de interesse da OpenAI, que é inspirada na personagem interpretada pela atriz, pode ser uma propriedade intelectual não apenas de Scartlett (a dona da voz), mas também de outros envolvidos no filme Her. Parece que seria possível argumentar que a modulação da voz da atriz acontece por intermédio do roteiro do filme e sob os conselhos e direcionamentos do diretor do longa-metragem, Spike Jonze. Imagina negociar com tudo isso de gente!
Tem vezes que eu leio as notícias e me sinto num episódio de Suits.
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Filho profissional vende a mãe e entrega (!)
Falando em IA, essa matéria curiosa do UOL Tab faz uma entrevista com João Marcello Bôscoli, também conhecido como o “filho da Elis Regina”, que tem utilizado as novas tecnologias pra restaurar a voz da mãe em músicas e colocá-las para tocar em serviços de streaming. O intuito dele é usar a IA como uma espécie de ferramenta de restauro de uma das vozes mais conhecidas da MPB - e, obviamente, ganhar um trocado com isso.
Essa não é a primeira vez que “IA” e “Elis Regina” aparecem em uma reportagem. No ano passado, os filhos autorizaram que uma campanha publicitária colocasse a filha Maria Rita para cantar junto da mãe em um comercial de carro. Desde então, a discussão sobre o uso de IA para recriar a imagem de pessoas que já se foram foi parar no Senado.
Bôscoli fala com tranquilidade sobre como cuida do acervo herdado da mãe junto dos irmãos, apresentando-se como um filho profissional, que não só vende a mãe, mas que também entrega. Parte do motivo da reportagem é também para angariar por aí alguém que tenha gravações pirata com a sua mãe, para que ele possa tentar restaurar mais algumas canções com o uso dos robôs.
O filho da Elis não foi o único a usar a tecnologia neste sentido. O podcast Ditadura Recontada também fez uso IA para “reconstruir” trechos das falas do General Ernesto Geisel, “clonando” a voz dele para reconstruir trechos de entrevistas que haviam sido transcritas por Elio Gaspari, jornalista e autor de uma série de livros sobre a ditadura.
Lembra que eu falei que as notícias às vezes parecem um episódio de série de advogados? Imagino que logo menos vamos tomar conhecimento de testamentos que deixam claro que os herdeiros não podem usar IA pra emular, clonar ou replicar uma pessoa pós-morte, pra evitar ter uma “vida eterna via IA”.
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A dor causada pelas águas na voz de Julia Dantas
Ouço sobre as dores de ver a água invadir a casa de alguém desde muito pequena. Tenho o privilégio de não ter vivido nenhum alagamento, mas alguns dos meus familiares mais próximos não puderam dizer o mesmo. De situações como tatear em busca de enlatados com os pés até os tipos de soluções para salvar livros encharcados, todas as memórias são embuídas com um pouco de dor da perda.
Ler sobre a situação do Rio Grande do Sul no noticiário não dá a dimensão real da emoção que perpassa pessoas que viram suas casas alagarem. Agora, ler o que diz uma escritora que viveu a situação na pele traz tanto a beleza de uma boa escrita como a empatia que faz a gente se solidarizar ainda mais com quem está numa situação dramática nestas últimas semanas. Por isso, recomendo muito a leitura da newsletter Passagem Dois, na qual Julia Dantas narra como é que ela chegou à conclusão de que preparo nenhum te prepara para perder coisas que são muito mais do que apenas coisas. A dica de leitura foi da newsletter Aurora.
O que mais você pode ouvir por aí
Gostei muito deste episódio do Rádio Novelo Apresenta que fala de duas produções que foram varridas da existência pelos seus próprios autores. O primeiro caso é uma experiência de poesia de um autor que queria provar um ponto - e consegue! - mas que depois decide acabar com tudo. O segundo caso envolve uma fotógrafa que teve seu quinhão de sucesso, mas que decidiu literalmente picotar os negativos dos seus registros, pra não deixar nada para a posteridade. De nome “Minha obra, minhas regras”, esse episódio me fez lembrar do poema “A Arte de Perder”, da Elizabeth Bishop. Perder, no final, pode ser bem fácil. Agora, de quem será o azar? Deles ou nosso?
O que vem por aí
Estou em busca de contatos de colegas ghostwriters
Eu me sinto só nessa ocupação que adotei pra mim, mas sei que somos vários. O trabalho pressupõe estarmos nos bastidores, mas isso não significa que devamos também ficar isolados. Quero muito promover um “café mal assombrado” com outros “fantasminhas” como eu, para trocarmos ideias, aprendizados e sugestões de como melhorar nossos trabalhos e até de recomendarmos uns aos outros caso estejamos com a agenda cheia.
Se você que me lê atua como ghostwriter, por favor, me procure por email!
Agora, se você conhece um colega que atua assim, que tal encaminhar essa newsletter para ele ou para ela? Quem sabe a pessoa se interessa em tomar um café comigo (mesmo que virtual!) pra gente trocar figurinhas. (Sim, é com essa cara de pau que eu cheguei a vários bons lugares, vou seguir apostando nela para chegar em outros mais!)Vai esfriar
Enquanto o brasileiro se prepara para um dos poucos feriados emendados do semestre, o tempo promete sair da cara de “verão suave” para finalmente entrar no outono. Não vá sair para o seu final de semana de sandalinha e sem um bom casaco à tiracolo, porque você pode ser pego por uma friagem. E ninguém quer ficar doente logo antes de uma parada estratégica para descansar na semana que vem. Aproveite para dar aquela verificada em quais casacos já não quer mais entre o seu acervo pessoal e separe para doações para os desabrigados no Rio Grande do Sul. Por enquanto a prioridade tem sido água, alimentos e materiais de limpeza, mas roupas de frio vão ser bem úteis para quem está sobrevivendo à essa tragédia climática.